Proibição do cultivo faz com que os medicamentos custem cerca de 400€, mas famílias e associações desafiam a Lei e conquistam na Justiça o direito de plantar e produzir canábis
O maior e mais populoso país da América Latina proíbe o cultivo de Canábis. O Brasil permite apenas a importação de produtos com CBD e/ou THC ou então a produção nacional com insumos importados. Resultado: um frasco de 30 ml é vendido por cerca de 400€ nas farmácias, sendo que o salário mínimo no Brasil é de cerca de 1.045 reais, o que equivale a 227€.
Desde Agosto, está pronto para ser votado na Câmara dos Deputados um projecto que legaliza o cultivo de canábis para fins medicinais e industriais. Porém, ainda não houve clima para a proposta ir a votação, entende o presidente da Comissão da Canábis, Paulo Teixeira. O presidente garante que há maioria para aprovar, mas o governo opõe-se ao cultivo e tenta atrasar a votação. O presidente Jair Bolsonaro, ligado a militares e líderes evangélicos, defende uma pauta conservadora de costumes. A perseguição à canábis é uma delas.
Mas enquanto os políticos debatem em Brasília,os pacientes dão um jeito de se tratar, seja plantando no próprio quintal ou unindo-se em associações. É o que chamam de “desobediência civil”.
"A nossa prática é como a de Jesus. Uma lei desumana não deve ser seguida. Toda a sexta-feira eu entrego 15 sementes por família na paróquia", admite o padre Antônio Luís Marchioni, o Padre Ticão, líder religioso e comunitário de São Paulo.
O que diferencia um mero acto ilegal da desobedicência civil é que a segunda é declarado. É assim que muita gente está a conseguir na Justiça o direito de plantar e produzir o próprio remédio. Mais de 150 brasileiros e duas ONGs já obtiveram a permissão.
O consumo de canábis foi perseguido por motivos raciais no Brasil desde o Século XIX, até ser proibido a nível federal em 1932. Foi só na virada do milénio que o uso do CBD no controlo das convulsões seria popularizado.
Atrás do tratamento, uma família de Brasília enfrentou um martírio para importar o óleo dos Estados Unidos. O ano era 2014, e o produto ficou retido na Agência de Vigilância Sanitária. A luta da família Fischer para tratar a filha Anny, assim como a de outras mães, virou o documentário Ilegal, que colocou o tema nas televisões e nos jornais.
Com a repercussão, o governo passou a autorizar a importação, mas a preço inacessível. Sem o poder aquisitivo dos Fischer, famílias decidiram pôr as mãos na terra. Associaram-se e passaram a trocar conhecimentos sobre cultivo e extracção e a compartilhar relatos de tratamento em casos de autismo, Parkinson, Alzheimer, etc. Médicos e advogados passaram a integrar essas redes.
Foi o caso de Margarete Brito, do Rio de Janeiro, que recebeu em 2016 a primeira autorização para plantar canábis no Brasil e produzir o óleo para a filha Sofia, que sofre da síndrome rara CDKL5. A Canábis foi o único remédio que controlou as crises da menina.
A luta de Margarete levou à fundação da associação Apepi (Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis), que hoje reúne quase 600 pessoas, muitas também já autorizadas a plantar.
O documento de autorização que elas possuem é um Habeas Corpus (HC), figura jurídica que protege a liberdade da pessoa ameaçada. Essa via foi descoberta por um grupo de advogados que integram a Rede Reforma.
"A gente começou a receber casos prontos para serem levados ao Judiciário. Pessoas que estavam a cultivar com acompanhamento médico, mas com risco de serem presas. Então a gente parou de se defender e passámos a buscar demanda por Direito", explicou o advogado Emílio Figueiredo, director da rede.
Contudo, pacientes sem HC continuam a ser presos. É o caso de Ivan*, de Florianópolis, detido com a canábis que seria usada no tratamento da filha autista. Ele mostrou à juíza os laudos que comprovavam que o óleo devolveu saúde e convívio social à menina e acabou por ser libertado. Hoje, através da associação Santa Cannabis, ele procura obter um HC.
Em 2017, a Abrace (Associação Brasileira Cannabis Esperança), da Paraíba, foi a primeira ONG autorizada a cultivar. A ONG começou num pequeno grupo de famílias e hoje atende quase 10 mil pacientes, com uma longa fila de espera, já que não há outra opção legal.
A Abrace era, até agora, a única ONG com esta permissão, mas no presente mês de Fevereiro uma nova associação de pacientes, a Cultive de São Paulo, foi autorizada a cultivar canábis no Brasil. O Tribunal de Justiça de SP permitiu a 21 pacientes associados o cultivo de 448 plantas por ano.
A Apepi também foi autorizada a plantar em Julho de 2020, mas a permissão foi derrubada meses depois, facto que não interrompeu o projecto de cultivar 10 mil plantas, afirmou o advogado da ONG, Ladislau Porto.
"Deu até mais ânimo. A dignidade dos pacientes está acima de qualquer decisão”.
* o sobrenome foi suprimido para preservar a identidade da criança