A discussão sobre a legalização da canábis recreativa está exausta. Os argumentos são conhecidos, a realidade é evidente e só por alguma forma de interesse financeiro (do tráfico aos centros de reabilitação há muitos interesses), fundamentalismo ideológico ou absoluta ignorância sobre o tema, alguém é capaz de continuar a defender o proibicionismo.
A fórmula é simples e já foi comprovada vezes sem conta:
Décadas de proibicionismo não acabaram com o consumo. Pelo contrário, em Portugal aumentou ao longo da última década;
Não sendo legal, os únicos beneficiários são os traficantes de droga;
Sob o domínio dos traficantes não é possível controlar a qualidade da planta, que é frequentemente adulterada, com consequências na saúde dos consumidores;
A proibição da canábis é o paraíso dos traficantes e um atentado à saúde pública. E estes factos não são desconhecidos dos maiores partidos portugueses: eles sabem que o movimento internacional da legalização é sustentado em resultados positivos e que mais tarde ou mais cedo será inevitável em Portugal. O centrão político não ignora esta inevitabilidade, simplesmente não se quer expor e ser eleitoralmente prejudicado por aquilo que eles acham que é a maioria da população portuguesa: ignorante. Ao centrão falta coragem política para defender o que está certo. E, muito provavelmente, está a cometer um erro de análise ao considerar a maioria do país ignorante – nada nos diz que a maioria dos portugueses esteja ainda na escuridão.
Mas o caminho da legalização encerra em si alguns perigos, se não formos capazes de discutir desde já formas de regulamentação do mercado e do consumo. BeauKilmer, num artigo de 2019, publicado no “American Journal of drug and alcohol abuse” discute algumas das contradições da legalização. O funcionamento do futuro mercado da canábis é uma dessas discussões.
No mercado legal existem requerimentos de qualidade e segurança que exigem dos produtores investimentos significativos, o que não sucede no mercado negro, resultando, eventualmente, em preços mais baixos na canábis que é comprada ao traficante.
Um mercado da canábis liberalizado significa a presença de várias empresas que competem entre si, pelo melhor preço. A sobrevivência dos produtores depende do nível de consumo – quanto maior, mais lucro. E esta é uma contradição do ponto de vista da saúde pública: o objectivo deve ser a prevenção do consumo problemático, se possível, diminuindo-o. Não podemos ter, no mesmo espaço público, produtores a utilizarem a publicidade para aumentar o consumo e instituições de saúde a procurar preveni-lo.
A potência e o tipo de produto que é legalizado também merece reflexão. Num mercado canábico excessivamente liberalizado, a possibilidade de manipulação da potência da planta em THC ou mesmo o tipo de produtos que é comercializado (hoje em dia já conhecemos de tudo: óleos, pomadas, chás, alimentos, ceras, vaporizadores, entre outros), choca frontalmente com a estratégia de redução de riscos que queremos ver implementada. Ainda que haja pouca evidência científica, a que existe parece apontar para um aumento dos riscos de perturbações mentais com a utilização de plantas manipuladas com alta potência de THC.
Diferentes modelos de legalização estão em desenvolvimento em diferentes partes do mundo, com resultados distintos. E alguns destes “perigos” foram já identificados e estão, claramente, relacionados com mercados muito liberalizados e pouco regulados. No entanto, há um exemplo para o qual deveríamos dirigir as nossas atenções: o Uruguai. No Uruguai, um utilizador adulto de canábis (o consumo por menores é proibido) é obrigado a registar-se enquanto tal perante o Estado. Só existem 3 formas de obter canábis: por auto-cultivo, através de cooperativas de pequenos produtores, com limite anual de produção, ou através de uma farmácia autorizada. Existem apenas duas empresas licenciadas; o Estado determina o preço e a quantidade de canábis produzida; toda a publicidade à canábis é proibida; está autorizado apenas um conjunto pequeno de estirpes da planta e com limite de concentração de THC a 9%.
Para ultrapassar os problemas sérios que um mercado liberalizado desencadeia não temos de copiar integralmente a regulamentação restritiva do Uruguai, mas pensar um futuro “legalize” exige a responsabilidade de prevenir que uma causa justa não se afogue nas ratoeiras do mercado livre.
Bruno Maia é médico especialista em Neurologia e Medicina Intensiva no Hospital de São José, em Lisboa, Bruno Maia trabalha no tratamento agudo de doentes com AVC, sendo ainda responsável pelo Laboratório de Ultrassonografia Neurovascular do Centro Hospitalar de Lisboa Central. Coordenador do programa de doação de órgãos no mesmo hospital, Bruno Maia coordena ainda a Viatura Médica de Emergência e Reanimação de Almada. Pós-graduado em emergência e terapia intensiva pela NOVA Medical School, Bruno Maia é um dos médicos que mais interveio pela legalização da canábis para fins medicinais em Portugal.