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Crónicas

21 Jul 2021

Sucesso do modelo associativo canabico em Espanha

Foi Espanha que primou pela viragem do panorama legal que permitiu avançar com a criação de associações para consumidores de marijuana.

Foi em 1992 com a Lei de Segurança do Cidadão (Ley Corcuera) na sequência da reforma do código penal Espanhol visando o endurecimento do quadro legal de uso de substâncias psicoativas tendo esta lei estabelecido pena de prisão para consumo de drogas ilícitas em vias e estabelecimentos públicos. A lei determinava a aplicação de coima em casos de consumo na via pública, nos casos em que não havia suspeita de tráfico. A consequência real desta lei verificou-se de forma evidente sendo que em 1998 havia um total de 47.877 sanções por apreensões em locais públicos. Foi contabilizado um aumento de 486% entre 1992 e 1998, perfazendo um total de 232.762 sanções aplicadas por posse de substâncias psicoativas ilícitas.

 

Para Gamella e Jiménez a Ley Corcuera não teve êxito na parte específica de reduzir a incidência ou consumo de cannabis tendo-se verificado um aumento registado nos anos subsequentes à entrada em vigor da nova lei. Até 2004 a cannabis tornou-se a substância psicoativa ilícita de maior popularidade em Espanha. Em última análise a lei teve um papel fundamental na criação e difusão do movimento canábico mantendo a natureza rebelde e contestatória associado ao consumo.

 

Os consumidores espanhóis depressa de organizaram e passaram a cultivar a planta para não arriscarem ser multados ou submetidos a tratamento compulsório. O autocultivo foi rapidamente adotado em alternativa à proibição de consumo em locais públicos, tendo ganho muitos adeptos em Espanha ao longo da trajetória histórica de luta contra a repressão e controle do Estado.

 

O movimento canábico surge em 1993 através da Asociación Ramón Santos de Estudios sobre el Cannabis (ARSEC) de Barcelona, permitindo enfrentar a repressão social a determinadas populações e também com objetivo de por fim a insegurança jurídica do auto cultivo da cannabis. Esta iniciativa impulsionou o autocultivo como forma de solução para os consumidores de cannabis permitindo que estes plantassem para consumo próprio de forma legal vetando o monopólio de grandes empresas ao setor da canábis.

 

Posteriormente, foi definida a estratégia pelos membros da ARSEC de colocar perante as autoridades fiscalizadoras a decisão prévia de autorização de modelo de cultivo de cannabis autogerido pelos consumidores/membros. Perante uma resposta inconclusiva do ministério Público acerca do assunto, a ARSEC decidiu convocar a imprensa e dar a conhecer a plantação destinada aos 100 membros que integravam a sua associação. O resultado foi a apreensão da plantação e a prisão dos diretores da ARSEC apresentados a juízo, tendo saído em liberdade por não se verificar quaisquer indícios de tráfico e serem considerados com interesses legítimos apesar de ter sido considerada uma atividade que representava perigosidade para a sociedade e por isso proibida. A ARSEC pode ter sido travada mas jamais perdeu a sua força e deu seguimento ao trabalho de desenvolvimento e fortalecimento do movimento canábico. A associação deu voz ao movimento e conseguiu legitimar a transparência de um processo completamente novo perante a lei e as autoridades, doaram sementes aos consumidores, forneceram cannabis a pacientes que a usavam para fins terapêuticos. Estes atos resultaram em conflitos legais que apesar de todos concluírem nas decisões judiciais que a cannabis não se destinada ao mercado ilícito esta prática teria sempre um resultado potencialmente perigoso para a sociedade por potenciar o consumo de substâncias perigosas.

 

Também os estatutos da ARSEC serviram de modelo base para a criação de novas associações que foram surgindo em várias regiões.

 

Nos anos seguintes entre 1994 e 2001 começaram a manifestar-se as primeiras intenções de associativismo e necessidades de união entre associações das várias regiões tendo surgido a necessidade da ARSEC solicitar autorização para inaugurar um local onde poderia distribuir cannabis auto cultivada pelos membros, assumindo também a necessidade desse local permitir o consumo de cannabis aos seus membros neste mesmo espaço de forma segura.

 

Em 1996, a ARSEC organizou em Barcelona um encontro nacional de associações em que foi apresentada a campanha “Contra la prohibicion me planto” com o intuito de descriminalizar o autocultivo de cannabis bem como fomentar o debate em torno da regulamentação da cannabis na sociedade.

 

Ainda em 1997 foi criada na cidade de Bilbao a Associación Kalamundia com 200 associados e uma plantação de seiscentas plantas. A esta uniram-se vários membros influentes da sociedade local, entre pessoas do parlamento regional, políticos, artistas, médicos e sindicalistas. O caso foi arquivado e a colheita e sua distribuição foram efetuadas sem grandes obstáculos legais. Estavam criadas as condições ideais para se abrir as portas da lei ao consumo de canábis em Espanha.

 

Após o impulso com todos os riscos inerentes ao pioneirismo gradual mas convincente da ARSEC, foram várias as vantagens que surgiram imediatamente a seguir a estas iniciativas desde as manifestações, jornadas de debates, encontros de associações e copas de cannabis que permitiram desenvolver diversas pesquisas e partilha de conhecimentos entre cultivadores e consumidores.

 

Em 2001 o Congresso de Deputados de Espanha recebeu pela primeira vez uma associação cannábica. A “Plataforma Nacional Por la normalización del uso del Cannabis”, um coletivo de 30 associações no país que atuou em prol da regulamentação da cannabis no país que permitiu, uma forma de organização concentrada em soluções que visassem as necessidades das associações, dos seus membros, mas sobretudo da busca por uma legalidade possível perenta a legislação em vigor. Assim, em 2003 foi constituída a Federacion de Asociaciones Cannábicas (FAC) que reúne as diversas associações cannábicas do país e defende os seus interesses perante a comunidade jurídica, de forma ordeira em busca de um caminho pela legalidade do consumo e produção da cannnabis.

 

Surgem assim os Clubes sociales de Cannabis como associações sem fins lucrativos, constituídos nos termos legais formados por membros consumidores terapêuticos e recreativos de cannabis. Entre as atividades prosseguidas pelos clubes a principal será o cultivo coletivo de cannabis destinado ao consumo privado dos seus sócios – todos maiores de idade ou consumidores previamente diagnosticados com alguma patologia em que haja eficácia terapêutica através do consumo de canábis. As regras dos clubes sociais foram estabelecidas internamente sendo algumas delas as seguintes: dispor de espaços privados para consumo dos sócios que são maiores de idade e habituados ao uso da planta; prossecução de atividades sem fins lucrativos; cultivo de produção concertada e previsão de partilha para cada um dos membros; partilha de pequenas quantidades destinadas ao consumo imediatos dos membros; e por fim, a existência de acordos coletivos de autocultivo com previsão da quantidade de produto a ser consumida por cada sócio anualmente.

 

Estas condições permitem observar a preocupação de organização dos Clubes sociais no país – fruto de uma transformação social baseada no trabalho coletivo, de acordo com as principais diretrizes de um modelo de regulamentação fundado na autogestão e realizado de forma homogénea por várias associações que entre si colaboraram na prossecução de um quadro jurídico menos repressivo.

 

Vemos que os clubes sociais procuram reger-se por princípios de autogestão e cooperativismo. Munoz e Soto referem três objetivos gerais de autogestão para o cultivo de canábis: 1) retirar o consumo da dependência do tráfico ou fornecimento ilícito, cumprindo esta exigência através do cultivo e distribuição feito entre associados; 2) evitar que se perca a capacidade de identificação do produto com a restrição da distribuição feita de e para um número limitado de pessoas; 3) garantir um consumo responsável e informado entre os membros dos clubes prevenindo o consumo abusivo e a partilha de experiências.

 

Incrível pensarmos que apesar de existirem um pouco por todo o país, os clubes sociais de canábis ainda não têm a sua atividade prevista na legislação e conseguiram não só sobreviver como fortalecer a sua atividade através da sagacidade dos membros que nunca desistiram de ver o principal interesse realmente protegido: o acesso a um consumo regulamentado da planta. Ainda sem regulamentação legal, os clubes sociais e todo o caminho de Espanha tem servido de inspiração a alguns outros países como por exemplo o Uruguai, que adota este modelo de autogestão protegendo os direitos das pessoas ao consumo e ainda instituindo que este deve ser um consumo feito por pessoas adultas e informadas devidamente sobre a substância e seus efeitos. Permitimo-nos a concluir que este modelo dos Clubes sociais encontrou espaço numa sociedade capitalista e convergiu denotando que contra tudo e todos se pode fazer mais e melhor que o próprio legislador quando as normas decorrem da audição dos interessados na persecução de interesses comunitários regulamentados.

 

Devemos partir do pressuposto que foram quatro os fatores determinantes à implementação destas regulamentações nacionais que contrariam e subsistem apesar das recomendações internacionais dos acordos da ONU: (i) a pressão dos movimentos cannábicos; (ii) o número significativo de consumidores; (iii) o aumento do número de estudos científicos sobre o benefício medicinal da planta para diversas patologias; (iv) e o impacto social negativo do aumento, na última década, do número de pessoas presas por delitos relacionados com a planta.

 

Percebemos que o caminho percursor deste desfecho se fez acarretando consequências pessoais dos que estiveram na linha da frente e, talvez seja esta falta de iniciativa que se vive a nível nacional.

 

Determinante é realmente acreditar numa causa pela simplicidade dos seus benefícios diretos e, neste ponto, o movimento espanhol lutou sem perder a esteira do seu escopo principal: o consumo da canábis e acesso aos seus benefícios quer pelo consumidor recreativo quer pelo medicinal, sem temor da repressão policial e judiciária, procurando com todas as iniciativas promovidas pelos agentes principais uma mudança do panorama legislativo que, salvo raras exceções, cumpre os objetivos principais da lei.



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