As entrevistas “Trabalhar com Canábis” procuram dar a conhecer portugueses que trabalham no sector da canábis em diversas empresas nacionais e internacionais. Começamos esta nova rúbrica com André Paquete Carvalho, um madeirense que trabalha na mítica Sensi Seeds desde 2015.
Como é que chegaste à Sensi Seeds. Qual foi o teu percurso?
Em 2006 fui de Coimbra, onde estava a estudar Bioquímica, para Oxford, com o intuito de iniciar outro curso. Encontrei um trabalho na única loja alternativa de todo Oxfordshire. Entre os vários departamentos dessa loja, fiquei responsável durante dois anos pelo departamento Head Shop. Vendia-se muita quantidade e variedade de produtos nesta secção, entre os quais sementes de canábis, pois em Inglaterra a sua comercialização era, e ainda é, legal. Diria que, aqui, uma das minhas grandes paixões se fundiu com a minha carreira profissional e percebi, desde logo, que com este sentimento associado, as “flores colhem-se”. Alguns dos meus melhores fornecedores eram dos Países Baixos e eu acabei por ir lá a uma “Cannabis Cup”. Além de ter feito bons negócios, Amesterdão encantou-me! Voltei para a Madeira no Verão de 2008 e abri o meu próprio espaço comercial, a Parkside Street Wear, que entre a sua amplitude de produtos contava também com uma vertente Growshop. Mais tarde, abri uma GrowShop independente noutra zona do Funchal, a Flower Odyssey, com fornecimento exclusivo dos Países Baixos. Promovi a planta o máximo que pude, mas a Madeira não é assim tão grande. Sempre sonhei que um dia a canábis iria ser legal, mas acho que a certo ponto perdi a esperança em Portugal. Decidi vir embora com a minha família.
Estás na Holanda desde quando?
Cheguei em fevereiro de 2015. Decidi com a minha mulher começar do zero, a minha filha tinha 2 anos e meio e o meu filho já nasceu cá, nessa Primavera. Estou muito agradecido aos meus cunhados por nos terem acolhido, até termos encontrado o nosso ninho. Amsterdão é uma cidade de enorme peso cultural, limpa, com uma construção harmoniosa rodeada de espaços verdes e água dos canais, onde se desfrutam as diárias deslocações de bicicleta!
Começaste logo a trabalhar com canábis?
De uma forma já trabalhava um pouco nesta indústria, mas sim, aqui na Sensi foi mais exclusivo. Comecei por entregar o meu CV em alguns seed banks, e rapidamente contactaram-me da Sensi Seeds para uma entrevista. A partir do momento que fui contratado, a dedicação foi total. Graças à extensa biblioteca e informação disponibilizada, aprofundei-me nesta matéria e desde logo fiz turnos semanais no Cannabis College, uma associação totalmente sustentada pela Sensi, que mantém as portas abertas e continua a informar, gratuitamente, todos os interessados sobre os mais variados temas relacionados com esta matéria.
A nível familiar, qual foi a reacção quando souberam que trabalhavas no sector da canábis?
Neste ponto já não era novidade para ninguém. Desde os meus primeiros anos de adulto que tenho uma relação muito aberta com a minha mãe em relação a este tópico e como a canábis sempre foi, para mim, mais do que algo que se fuma, sempre foi muito fácil dialogar também com os meus avós e tios sobre esta indústria tão completa.
O que significa para ti trabalhar num dos bancos de sementes mais antigo do mundo?
Significa estar directamente ligado à minha Indústria de eleição, rodeado de lendas e de "connoisseurs" onde nunca se pára de absorver informação. Significa representar uma das empresas mais importantes do mundo no seu sector, qualidade e originalidade. A Sensi Seeds é, na realidade, o banco de sementes mais antigo do mundo ainda no activo. É um grande orgulho estar envolvido nos ideais do grande Ben Dronkers. Além da enorme variedade genética, estável e original disponibilizada pela Sensi ao longo destes 37 anos, o Dronkers Group detém a maior colecção do mundo de artefactos directamente relacionados com canábis, desde livros, documentos e pinturas históricas a instrumentos de diferentes povos. Parte dessa colecção está disponível no primeiro museu de canábis do mundo, o Hash Marijuana and Hemp Museum, aqui em Amesterdão, e outra em Barcelona. O grupo da Sensi Seeds detém também a Hempflax – líder em produção e transformação de cânhamo na Europa, e a SensiPharma, dedicada à Investigação médica.
É um legado enorme…
Sim! A Sensi Seeds abriu a primeira loja online do mundo de venda de sementes de canábis em 1996, e o nosso blog é muito extenso, representando de alguma forma o legado que a Sensi carrega ao longo dos anos. Duas das nossas genéticas são cultivadas aqui pela única empresa médica licenciada, o que também sublinha a qualidade do nosso trabalho e mostra que a experiência adiciona pontos ao resultado no final.
Qual é o teu cargo na empresa?
Sou o Retail Manager de Amsterdão, 4 lojas oficiais e os dois espaços do Museu onde tenho uma equipa de 20 a 25 membros. Reporto directamente ao CRO da SensiSeeds e ao CEO do Dronkers Group. Trabalho diariamente com todos os departamentos. A minha missão é fazer com que os nossos clientes tenham acesso fácil a produtos de canábis de qualidade superior e sejam atendidos por profissionais instruídos nesta matéria, obtendo uma experiência única e holística sobre o que a planta tem para oferecer. Também cultivo todas as plantas que temos em exposição nestes espaços com o meu assistente, a fuga perfeita para o trabalho de escritório.
Quais os aspectos mais positivos e negativos do teu trabalho?
Diria que o mais positivo é a ausência do preconceito em relação a esta planta. Temos um ambiente ainda com um toque familiar e algumas regalias que já não são muito comuns. Sinto muita confiança por parte de todos os meus colegas. Mais relacionado com o meu cargo, tenho muita liberdade de decisão e também de horário. Aspectos negativos, não tenho nada a apontar. Trabalho muito, mas com gosto. Talvez o facto de, mesmo aqui, as leis sobre a canábis não serem claras. Sim, Amesterdão é muito aberta, mas ainda se vivem tempos de tolerância. Na realidade, a canábis aqui continua a ser ilegal.
Qual a apreciação que fazes do mercado português?
Diria que a percepção da população em geral está a mudar. Começam a associar a planta não a drogas, mas sim a um estilo de vida mais saudável. Já sabem que é uma planta onde poderão encontrar soluções alimentares altamente nutritivas, soluções para um sistema imunitário mais forte, para certas condições físicas e psíquicas, soluções ambientais, sustentáveis e sócio-economicamente viáveis.
Achas que as pessoas estão cada vez mais informadas?
Sim. Senti também que quem procura este tipo de produtos já tem como preocupação a sua origem e que técnicas de produção são aplicadas, onde um produto premium, cru e orgânico acaba por ser a escolha. Confesso que, quando vim do Porto, da última edição da Cannadouro, vim muito satisfeito com a percepção que se está a criar em terras lusas.
Qual é a tua opinião sobre a legalização da canábis medicinal, que ocorreu em 2018 em Portugal?
É, sem dúvida, muito positiva. A canábis é uma excelente alternativa natural aos fármacos. Só é pena que tenha sido catapultada pelo investimento estrangeiro e não nacional. Acho que está a demorar muito tempo a estar disponível aos portugueses e sinto que continua a ser das últimas alternativas terapêuticas, sendo, consequentemente, muito pouco receitada pelos médicos. Quase todos, senão todos os países e também estados americanos que até agora regulamentaram a canábis para fins recreativos, começaram por regulá-la para fins medicinais. Espero que o governo português agora reeleito não ponha de parte as propostas de lei apresentadas antes da dissolução, onde visam soluções regulamentares para acabar com negócios ilícitos e disponibilizar à população um produto de qualidade controlada, contribuindo também economicamente para o país.
A Sensi Seeds recentemente apostou nas flores de CBD. Como vês a “confusão” em que o cânhamo se encontra, com diferentes leis um pouco por toda a Europa?
Verdade, lançámos a Sensi Weeds a nível europeu, com o intuito de continuar a disponibilizar produtos de canábis premium. Comercializamos flores onde o rácio de canabinóides apresentado é o natural, pois nenhum dos nossos produtos é lavado nem aplicamos técnicas pós-cultivo de redução de THC. Lançámos também flores de CBG (canabigerol), um canabinóide muito interessante, que promete tanto ou mais do que o CBD. A confusão aparece quando não existem leis claras. Sinto muitas incertezas e resistência por parte dos governos, quando deveriam estar em ressonância com a União Europeia. Não faz sentido um produto poder ser comercializado, mas não poder ser produzido nesse próprio país. Na minha opinião, são situações hipócritas e de interesses ocultos. A Sensi Seeds também foi uma das primeiras entidades a disponibilizar o seu óleo de CBD, de produção inteiramente própria e em regime orgânico. Sabemos que é um canabinóide extremamente importante e estão à vista os seus benefícios, mas não é o único e a sua forma isolada também não é a mais benéfica.
Que solução acharias melhor para esta situação, a nível Europeu?
Para mim o melhor caminho para a Europa, é o da regulamentação: médica, recreativa e do cultivo próprio por todos os países membros. Só assim se pode ter um regime de controlo eficaz e seguro nos comércios locais. Neste cenário ideal, o CBD passava a ser mais um dos imensos produtos que podem ser obtidos através da planta, a par de outros com diferentes características e, eventualmente, diferentes tipos de controlo de venda.
E em relação ao cânhamo industrial?
No que respeita à canábis com teor de THC não superior a 0,2%, e os seus constituintes naturais, como o CBD, a União Europeia não pode ser mais clara com as suas directivas. Todos os países europeus deveriam estar a segui-las rigorosamente, facilitar o cultivo de cânhamo com incentivos e benefícios (como já aconteceu há cerca de 10 ou 20 anos em Portugal) e não a dificultar a vida aos agricultores e produtores. Estamos em 2022, esperava uma maior evolução em termos verdadeiramente sustentáveis. Esperava também que Portugal produzisse mais papel de cânhamo. Quem fala de papel, fala de têxteis, materiais de construção, cosméticos e todo o tipo de indústrias, que são muitas, onde o cânhamo e os seus derivados, podem ser incorporados.
Achas que a canábis tem um papel fundamental na sustentabilidade?
Já existem muitas oportunidades ambientalmente conscientes e muito eficazes para que esta indústria se continue a desenvolver. Acredito que a canábis é uma resposta evidente para o combate à poluição global, à desflorestação e à devastação dos oceanos, causada pela pesca comercial excessiva. Estou disponível e activamente empenhado para contribuir neste ascendente.